Rótulas
Durante mais de três séculos, a timidez paulista se
escondeu atrás do gradeado árabe-peninsular das rótulas.
Desde
as casas pobres de taipa, branqueadas a tabatinga, às casas de andar
com
revestimentos de azulejos de fazendeiro rico, desde a casa
tímida de almotacé à casa larga e espaçosa de ouvidor, por onde houvesse
dois olhos a
espreitar e uma timidez a se esgueirar, lá estavam as
rótulas: esse gradeado de madeira, última recordação dos mucharabiehs árabes, que nos
veio do Reino para velar de mistério e encher de penumbra a alma beata e arisca de S. Paulo antigo.
Verde-gaio
ou amarelo-gema; baixas, à Mafra, ou altas de balcão à mourisca; com
uma
cruz de tope ou rendilhando um coração; frustes e lisas na
parede caiada ou desenhada entre uma moldura ramalhuda de azulejos
portugueses; com o seu
postigo de taramela e a sua rodela de couro, lá estavam
elas, ocultando uma timidez de rapariga, escondendo uma curiosidade de
mulher, tapando uma
bisbilhotice de velha.
A rótula foi protetora do amor, a cúmplice do mexerico, a doce confidente dos
sentimentos líricos, que se agitaram sob os cabeções de crivo das sinhás de 1830.
Não houve, há setenta anos (N.E.: cerca de 1860, sete
décadas antes da publicação da obra), olhar de iaiá
paulista que se não enlanguescesse atrás do seu xadrez,
ouvindo a ternura de uma serenata de clarineta; muita
curiosidade de rapariga de saia-balão, coriscou e espreitou, entre o seu
rendado, num pasmo
dengue, para uma calça branca de estudante, "faceira e bem
posta"; muito olho bisbilhoteiro de beata profissional rebrilhou com
malícia e gula,
cocando através de seu ralo.
"Tem-se a impressão de que se é espreitado por toda a
parte – escreve um viajante francês em 1840 – entretanto as ruas de S. Paulo são quase
desertas".
Os olhares estavam por detrás das rótulas.
Esse
costume vincou o caráter paulista. O nosso acanhamento tem ainda como
causa, além
do sangue bugre, arisco e desconfiado, que ainda corre mais
ou menos adelgaçado em nossas veias, o crivo claro-escuro das janelinhas
e dos balcões
de rótulas. A nossa timidez ainda se enrosca entre a sua
peneira, a nossa proverbial desconfiança ainda espreita através do seu
ralo.
"Ocultarem-se de que? Somos nós um povo de cucas"?
Pergunta o Constitucional de 1854, a essa sociedade embuçada em mantilhas de baeta e robições de pano piloto, que espiava por detrás das
rótulas de pau.
"É bom refletir sobre o estímulo de tudo que se esconde",
termina o mesmo jornal contra as rótulas esconde-pecado.
Mas de nada adiantam os conceitos do Constitucional.
Em 1860, nos dias de
"procissão do enterro", ainda S. Paulo se iluminava com
velas de sebo por detrás das rótulas, diz Egídio Martins. E em 1868
ainda elas velavam muito
desalinho de interior e muita bisbilhotice de beata. Castro
Alves escreve então, numa carta de impressões paulistas: "Se
a poesia está no espreitar de uns olhos negros através das
rótulas dos balcões ou através das rendas de uma mantilha, que em amplas
dobras esconde
as formas das moças (paulistas), então S. Paulo é a terra da
poesia".
Em 1873, entretanto, a Câmara Municipal, num edital seco e ríspido, exige a retirada
das rótulas, postigos e cancelas no prazo improrrogável de 30 dias, sob pena de 5$000 de multa.
Mas o povo resiste. A imprensa da época protesta: "É um
atentado contra o direito de propriedades", grita o Correio Paulistano. "O povo tem
o direito de resistência contra as ordens ilegais", incita aquele jornal num violento e indignado artigo defendendo a
integridade das rótulas contra o ukase (N.E.: o mesmo que um torpedo disparado) da
Câmara.
Mas
em 1874 foram-se despregando as primeiras rótulas das janelas
paulistas, e
foram-se as últimas por volta de 1880. Com elas também se
foi todo um passado em que revoavam mantilhas de baeta, dobres de sino
de Misericórdia, e
que cheirava a cravo da Índia, rapé e a Água de Córdoba.
Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0354b.htm
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